A primeira vez que o telefone tocou ele não se moveu. Continuou sentado 
sobre a velha almofada amarela, cheia de pastoras desbotadas com coroas 
de flores nas mãos. As vibrações coloridas da televisão sem som faziam a
 sala tremer e flutuar, empalidecida pelo bordô mortiço da cor de luxe 
de um filme antigo qualquer. Quando o telefone tocou pela segunda vez 
ele estava tentando lembrar se o nome daquela melodia meio arranhada e 
lentíssima que vinha da outra sala seria mesmo “Desespero agradável” ou 
“Por um desespero agradável”. De qualquer forma, pensou, desespero. E 
agradável.
A luz de mercúrio da rua varava os orifícios das cortinas de renda 
misturando-se, azulada, à cor meio decomposta do filme. Pouco antes do 
telefone tocar pela terceira vez ele resolveu levantar-se — conferir o 
nome da música, disse para si mesmo, e caminhou para dentro atravessando
 o pequeno corredor onde, como sempre, a perna da calça roçou contra a 
folha rajada de uma planta. Preciso trocá-la de lugar, lembrou, como 
sempre. E um pouco antes ainda de estender a mão para pegar o telefone 
na estante, inclinou-se sobre as capas de discos espalhadas pelo chão, 
entre um cinzeiro cheio e um caneco de cerâmica crua quase vazio, a não 
ser por uns restos no fundo, que vistos assim de cima formavam uma massa
 verde, úmida e compacta. “Désespoir agréable”, confirmou. Ainda em pé, 
colocou a capa branca do disco sobre a mesa enquanto repetia 
mentalmente: de qualquer forma, desespero. E agradável.
— Lui? — A voz conhecida. — Alô? É você, Lui?
— Eu — ele disse.
— O que é que você está fazendo?
Ele sentou-se. Depois estendeu o braço em frente ao rosto e olhou a 
palma aberta da própria mão. As pequenas áreas descascadas, ácido úrico,
 diziam, corroendo lento a pele.
— Alô? Você está me ouvindo?
— Oi — ele disse.
Perguntei o que é que você estava fazendo?
— Fazendo? Nada. Por aí, ouvindo música, vendo tevê. — Fechou a mão. — Agora ia fazer um café. E dormir.
Hein? Fala mais alto.
— Mas não sei se tem pó.
—O quê?
— Nada, bobagem. E você?
Do outro lado da linha, ela suspirou sem dizer nada. Então houve um 
silêncio curto e em seguida um clique seco e uma espécie de sopro. Deve 
ter acendido um cigarro, ele pensou. Dobrou mecanicamente o corpo para a
 esquerda até trazer o cinzeiro cheio de pontas para o lado do telefone.
— Que que houve? — perguntou lento, olhando em volta à procura de um maço de cigarros.
— Escuta, você não quer dar uma saída?
— Estou cansado. Não tenho cabeça. E amanhã preciso acordar muito cedo.
— Mas eu passo aí com o carro. Depois deixo você de novo. A gente não demora nada. Podia ir a um bar, a um cinema, a um.
— Já passa das dez — ele disse.
A voz dela ficou um pouco mais aguda.
— E vir aqui, quem sabe. Também você não quer, não é? Tenho uma vodca 
ótima. Daquelas. Você adora, nem abri ainda. Só não tenho limão, você 
traz? — A voz ficou subitamente tão aguda que ele afastou um pouco o 
fone do ouvido. Por um momento ficou ouvindo a melodia distante, lenta e
 arranhada do piano. Através dos vidros da porta, com a luz acesa nos 
fundos, conseguia ver a copa verde das plantas no jardim, algumas folhas
 amareladas caídas no chão de cimento. Sem querer, quase estremeceu de 
frio. Ou uma espécie de medo. Esfregou a palma seca da mão esquerda 
contra a coxa. A voz dela ficou mais baixa quando perguntou:
— E se eu fosse até aí?
Os dedos dele tocaram o maço de cigarros no bolso da calça. Ele contraiu
 o ombro direito, equilibrando o fone contra o rosto, e puxou devagar o 
maço.
— Sabe o que é — disse.
—Lui?
Com os dentes, ele prendeu o filtro de um dos cigarros. Mordeu-o, levemente.
— Alô, Lui? Você está aí?
Ele contraiu mais o ombro para acender o cigarro. O fone quase se 
desequilibrou. Tragou fundo. Tornou a pegar o fone com a mão e soltou 
pouco a pouco o ombro dolorido soprando a fumaça.
— Eu já estava quase dormindo.
— Que música é essa aí no fundo? — ela perguntou de repente.
Ele puxou o cinzeiro para perto. Virou a capa do disco nas mãos.
— Chama-se “Por um desespero agradável” — mentiu. — Você gosta?
— Não sei. Acho que dá um pouco de sono. Quem é?
Ele bateu o cigarro três vezes na borda do cinzeiro, mas não caiu nenhuma cinza.
— Um cara aí. Um doido.
— Como ele se chama?
— Erik Satie — ele disse bem baixo. Ela não ouviu.
— Lui? Alô, Lui?
— Digue.
— Estou te enchendo o saco? — Outra vez ele escutou o silêncio curto, o 
clique seco e o sopro leve. Deve ter acendido outro cigarro, pensou. E 
soprou a fumaça.
— Não — disse.
— Estou te enchendo? Fala. Eu sei que estou.
— Tudo bem, eu não estava mesmo fazendo nada.
— Não consigo dormir — ela disse muito baixo.
— Você está deitada?
— É, lendo. Aí me deu vontade de falar com você.
Ele tragou fundo. Enquanto soprava a fumaça, curvou outra vez o corpo para apanhar
o caneco de cerâmica. Enfiou o indicador até
o fundo, depois mordiscou as folhas miúdas
com os incisivos e perguntou:
— O que é que você estava lendo?
— Nada, não. Uma matéria aí numa revista. Um negócio sobre monoculturas e sprays.
— What about?
—Hein?
— O que você estava lendo.
Ela tossiu. Depois pareceu se animar.
— Umas coisas assim, ecologias, sabe? Dizque se você só planta uma 
espécie de coisa na terra por muitos anos, ela acaba morrendo. A terra, 
não a coisa plantada, entende? Soja, por exemplo. Dizque acaba a camada 
de húmus. Parece que eucalipto também. Depois aos poucos vira deserto. 
Vão ficando uns pontos assim. Vazios, entende? Desérticos. Espalhados 
por toda a terra.
O disco acabou, ele não se mexeu. Depois, recomeçou.
— Assim como se você pingasse uma porção de gotas de tinta num 
mata-borrão — ela continuou. — Eles vão se espalhando cada vez mais. 
Acabam se encontrando uns com os outros um dia, entende? O deserto fica 
maior. Fica cada vez maior. Os desertos não param nunca de crescer, 
sabia?
— Sabia — ele disse.
— Horrível, não?
— E os sprays?
—O quê?
— Os sprays. O que é que tem os sprays?
— Ah, pois é. Foi na mesma revista. Diz que cada apertada que você dá 
assim num tubo de desodorante. Não precisa ser desodorante, qualquer 
tubo, entende? Faz assim ah, como é que eu vou dizer? Um furo, sabe? Um 
rombo, um buraco na camada de como é mesmo que se diz?
— Ozônio — ele disse.
— Pois é, ozônio. O ar que a gente respira, entende? A biosfera.
— Já deve estar toda furadinha então — ele disse.
—O quê?
— Deve estar toda furada — ele repetiu bem devagar. — A camada. A biosfera. O ozônio.
— Já pensou que horror? Você sabia dis so
Lui?
Ele não respondeu.
— Alô, Lui? Você ainda está aí?
— Estou.
— Acho que fiquei meio horrorizada. E com medo. Você não tem medo, Lui?
— Estou cansado.
Do outro lado da linha, ela riu. Pelo som, ele adivinhou que ela ria sem
 abrir a boca, apenas os ombros sacudindo, movendo a cabeça para os 
lados, alguns fios de cabelo caídos nos olhos.
— Não estou te alugando? — ela perguntou. — Você sempre dizque eu te 
alugo. Como se você fosse um imóvel, uma casa. Eu, se fosse uma casa, 
queria uma piscina nos fundos. Um jardim enorme. E ar-condicionado. Que 
tipo de casa você queria ser, Lui?
— Eu não queria ser casa.
- Como?
— Queria ser um apartamento.
— Sei, mas que tipo?
Ele suspirou:
— Uma quitinete. Sem telefone.
— O quê? Alô, Lui? Você não ia mesmo fazer nada?
— Um chá, eu ia fazer um chá.
— Não era café? Me lembro que você falou que ia fazer café.
— Não tem mais pó. — Ele lambeu a ponta do indicador, depois umedeceu o 
nariz por dentro. Então sacudiu o cinzeiro cheio de pontas queimadas e 
cinza. Algumas partículas voaram, caindo sobre a capa branca do disco, 
com um desenho abstrato no centro. Com cuidado, juntou-as num montinho 
sobre o canto roxo da figura central. — Nem coador de papel. E acabei de
 me lembrar que tenho um chá incrível. Tem até uma bula louquíssima, 
quer ver? Guardei aqui dentro. — Ele equilibrou o fone com o ombro e 
abriu a cadernetinha preta de endereços.
— Chá não tem bula — ela resmungou. Parecia aborrecida, meio infantil. — Bula é de remédio.
— Tem sim, esse chá tem. Quer ver só? — Entre duas fotos polaroid 
desbotadas, na contracapa da caderneta, encontrou o retângulo de papel 
amarelo dobrado em quatro.
— Lui? Você não quer mesmo vir até aqui? Sabe — ela tornou a rir, e 
desta vez ele imaginou que quase escancarava a boca, passando devagar a 
língua pelos lábios ressecados de cigarro —, eu acho que fiquei meio 
impressionada com essa história dos desertos, dos buracos, do ozônio. 
Lui, você acha que o mundo está mesmo no fim?
Ele desdobrou sobre a mesa o papel amarelo, ao lado das duas fotos tão 
desbotadas quanto as manchas redondas de xícaras quentes na madeira 
escura. Uma das fotos era de uma mulher quase bonita, cabelos presos e 
brincos de ouro em forma de rosas miudinhas. A outra era de um rapaz com
 blusa preta de gola em V, o rosto apoiado numa das mãos, leve 
estrabismo nos olhos escuros.
— Sem falar nas usinas nucleares — ele disse. E com a ponta dos dedos, 
do canto roxo do desenho na capa do disco, foi empurrando o montículo de
 cinzas por cima das formas torcidas, marrom, amarelo, verde, até o 
espaço branco e, por fim, exatamente sobre o rosto do rapaz da foto.
— Lui? — ela chamou inquieta. — Encontrou o negócio do tal chá?
— Encontrei.
— Você está esquisito. O que é que há?
— Nada. Estou cansado, só isso. Quer ver o que diz a bula? É inglês, 
você entende um pouco, não é? — Ela não respondeu. Então ele leu, 
dramático: —... is exceilent for ali types of nervous disorders, 
paranoia, schizophrenia, drugs effects, digestive problems, hornionai 
diseases and other disorders... — Começou a rir baixinho, divertido: — 
Entendeu?
— Entendi — ela disse. — É um inglês fácil, qualquer um entende. Porreta esse chá, hein? É inglês?
Ele continuou rindo:
— Chinês. Aqui embaixo diz produced in China. — Com a cinza, cobriu todo
 o olho estrábico do rapaz. — Drugs effects é ótimo, não é?
— Maravilhoso — ela falou. — O disco tá tocando de novo, já ouvi esse
— Tá bom — ela disse.
— Tá bom — ele repetiu. E pensou que quando começavam a falar desse 
jeito sempre era um sinal tácito para algum desligar. Mas não quis ser o
 primeiro.
— Vou tirar amanhã — ela falou de re pente.
—Hein?
— Nada. Vai fazer teu chá.
— Tá bom. Aqui diz também que tem vitamina E. — Abriu a mão e olhou as 
manchas branquicentas na palma. — Não é essa que é boa para a pele?
— Acho que aquela é a A. Não entendo muito de vitaminas.
— Nem eu. A C eu sei que é a da gripe, todo mundo sabe. Qual será a que 
cura os tais drugs effects? Cheirei todas hoje. Estou com aquele... 
vazio intenso, sabe como?
— Não sei. — De repente ela parecia apressada. — Vou desligar.
— Você ligou o rádio?
— Ainda não. Como é mesmo o nome dessa música?
— “Por um desespero agradável” — ele mentiu outra vez, depois corrigiu: — Não. É só “Desespero agradável”.
— Agradável?
— É, agradável. Por que não?
— Engraçado. Desespero nunca é agradável.
— Às vezes sim. Cocaína, por exemplo.
— Você só pensa nisso?
— Não, penso em fazer um chá também.
— Hein?
— Mas essa que tá tocando agora é outra, ouça. — Ele ergueu um momento o
 fone no ar em direção às caixas de som e ficou um momento assim, 
parado. — São todas muito parecidas. Só piano, mais nada. — A cinza 
cobria o rosto inteiro do rapaz na foto. — Essa agora chama-se “À 
l’occasion d’une grande peine”.
— Sei.
— É francês.
— Sei.
— Pena, dor. Não pena de galinha. Uma grande dor. Occasion acho que é 
ocasião mesmo. Mas podia ser passagem. Melhor, você não acha? Passagem 
parece quejá vai embora, que já vai passar. O que é que você acha?
— Vou ver se durmo. — Ela bocejou. — Francês, inglês, chá chinês. Você hoje está internacional demais para o meu gabarito.
— Escapismo — ele disse. E acendeu outro cigarro.
— Uma pena que você não queira mesmo sair. — A voz dela parecia mais 
longe. — Estou pensando em abrir mesmo aquela garrafa de vodca.
— Antes de dormir? — ele falou. — Toma leite morno, dá sono. Põe bastante canela. E mel, açúcar faz mal.
— Mal? Logo quem falando...
— Faça o que eu digo, não faça o que eu. A cinza descia pelo pescoço, 
quase confundida com o preto da gola. A voz dela soava um tanto irônica,
 quase ferina.
— Ué, agora você resolveu cuidar de mim, é?
— Vou fazer meu chá — ele disse.
— Como é mesmo que se pronuncia?
Esquizôfrenia?
— Não, é squizofrênia. Tem acento nesse e aí. E se escreve com esse, cê,
 agá. Depois tem também um pê e outro agá. Tem dois agás.
— E nenhum ipsilone? Nenhum dábliu? — ela perguntou como se estivesse 
exausta. E amarga. — Adoro ipsilones, dáblius e cás. Tão chique.
— D ‘accord — ele disse. — Mas não tem nenhum.
— Tá bom — ela riu sem vontade. Em seguida disse tchau, até mais, boa-noite, um beijo, e desligou.
Ele abriu a boca, mas antes de repetir as mesmas coisas ouviu O clique 
do fone sendo colocado no gancho do outro lado da cidade. O disco 
chegara novamente ao fim, mas antes que recomeçasse ele curvou-se e 
desligou o som. Em pé, ao lado da mesa, amarfanhou o papel amarelo e 
jogou-o no cinzeiro. Depois soprou as cinzas do rosto do rapaz. Algumas 
partículas caíram sobre a foto da mulher. Andou então até o pequeno 
corredor, curvou-se sobre a planta e com a brasa do cigarro fez um furo 
redondo na folha. Respirou fundo sem sentir cheiro algum. A sala 
continuava mergulhada naquela penumbra bordô, baça, moribunda, a 
almofada fosforescendo estranhamente esverdeada à luz azul de mercúrio. 
Ele fez um movimento em direção ao telefone. Chegou a avançar um pouco, 
como se fosse voltar. Mas não se moveu. Imóvel assim no meio da casa, o 
som desligado e nenhum outro ruído, era possível ouvir o vento soprando 
solto pelos telhados.